Excombros (2010)
Por Maria Cláudia
Lopes e Renan Bonito.
( Duas pessoas num espaço de
ruínas, tijolos quebrados, pó, areia, objetos esdrúxulos, carrinho de
supermercado abandonado...escombros.Elas tem os olhos abalados, bem abertos...
ninam-se para se proteger do frio, num balanço sutil. Ao fundo a trilha é de um piano macio mas intenso Existe um tempo vivo entre as falas. Soa sirene.)
A: Que coisa grandiosa
não? (contemplando os escombros)
B: Grandiosa...
B: E você? (pequena
pausa) Quase não pisca...
A: É... já não, e quase
não falo também, as palavras escapam. Só consigo falar disso, o que houve, o
ocorrido... somente.
B: Sei... sei.
A: Sabe?
B: Sei...
(pausa)
A: Algum sobrevivente?
B: Nenhum não...
A: Nem você?
B: Nem eu...
A: Nem eu tão pouco.
(Pausa. Começam a arrumar os tijolos. Soa sirene )
A: Mas foi melhor assim...
B: Será?
A: Foi, sem dúvidas. Havia
sinais de estragos eminentes... inevitável mesmo.
B: Você fazia o
que....quando...você sabe?
A: Sonhava.
B: Claro... e doeu?
A: Não, assustou um pouco,
na hora. Agora sim dói um pouco todo dia.
B: Abalos sísmicos são
assim.
A: Abalos. Ao menos
estivemos aqui na cidade, cruzando suas ruas de mármore. Admirando a
arquitetura de seus edifícios sublimes... não é?
B: Lavando roupa!
A: O que?
B: O que eu fazia... eu
lavava roupa.
A: Ficaram limpas?
(Não há resposta, pausa. Vão
arrumar mais tijolos e posicionam-se para a primeira ruptura)
(A chega com uma mala cheia e entrega a B, sendo que este
último pára,se assusta, e começa a vasculhar, e a partir do momento que percebe
o que realmente é, começa um leve desespero.
Falando mais consigo)
A: Não.
( B devaneia sobre os resquícios da velha
cidade)
B: Eu olho pra cidade de
hoje e tento reconhecer os traços do de antes... mas aquilo que foi...não está.
Passo horas olhando, procurando vestígios nas frestas das portas que sobraram,
nas pedras da rua, nos fios de aço que algum dia amparavam os telhados das casas...
mas nada, nada quase, muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido,
e o que sobrou foram corpos modificados.
A: Entendo... entendo que a gente procura no novo o velho, não é? E
encontra? Encontra só vestígio: um cheiro esquecido, uma palavra que tenha
rompido o silêncio, a lembrança de um raio de sol que pousou sua sorte na
janela de um edifício demolido agora... (tentando quebrar a nostalgia) Mas
você nunca pensou que as coisas se constroem umas sobre as outras? Tudo que
virá de alguma forma virá....sendo construído sobre esses excombros, e sobre o
que eles foram, são.
B: Não, pensar nisso é o
mesmo que pensar que viveremos na mesma cidade, fundando o novo sobre o
velho... eu gosto de pensar que o que foi destruído desaparece, e o que virá
seria inteiramente a coisa nova. Outra cidade. Desconfio
no entanto do que está por vir...
A: Pois eu sempre penso
nisso – que uma coisa nova cresce da velha, estes
restos adubam o chão do que será a nova cidade.
(Pausa.Ecoa sirene. Fazem menção de começar a organizar os escombros,
construir a nova cidade)
B: Espere! Um minuto antes
para reverência aos mortos!
A: Nós?
B: Também.
( Param um minuto e depois
começam a reconstrução do que seja novo.)
B: Alguma coisa sua
sobrou?
A: Quase nada... um braço,
uma parte do fígado, um olho míope. O que ficou mesmo de mim, acho que nem é
meu. Você?
B: Eu só saí arranhado,
mas daí me arranhei mais, pra não me sentir tão diferente.
A: (Pausa) Me mostra?
B: Mostro. Mas antes
conversemos, pois a fala vai amenizar o seu olhar...
(Sentam) Doeu?
A: O que?
B: Você sabe... a mudança... a perda... tudo que levou você a
estar aqui agora da forma como eu te vejo.
A: Doeu... muito. Mas falemos do que está ainda por vir. Para
que se ater aos retrovisores han? Com caminhos inéditos pela frente?...
B: Mas ainda preciso te contar velhas
histórias Uma velha cigana, que passou e sobreviveu
dezenas de vezes, salvando-se destes abalos ensinou-me uma forma de
amenizar tudo: em cima da cicatriz criar outra.
A: Eu preciso ver ...
B: (Pega o figurino
para ir levantando para mostrar a coxa machucada) O oue eu fiz ingenuamente,
desconhecendo o fato de que uma marca, uma cicatriz é sempre uma nova,
nunca substitui outra. (Mostra a perna)
( A contempla a
cicatriz)
A: É... uma
cicatriz é algo absolutamente único, cada qual com as suas peculiaridades. O
que está perdido, está perdido. Nenhuma cicatriz substitui a outra. Muito menos
protege a sua pele para as que virão...
B: Fiz porque assim eu não
pensaria em você sabe o que.
A: Sei...
B: E a dor física fica tão
latejante, literalmente, que você não pensa mais em nada. Apenas no que arde...
A: É?
B: É, só que a cada passo
que eu dou, a mente no instante lembra de suas causas , e o íntimo simplesmente
dispara... pois, não importa mais que dor seja.
O que importa é que aconteceu.
A: E que nada voltará.
B: Exatamente. A não ser outras cicatrizes mais leves ou duras.
A: Quem viver na cidade e apreciar
o cheiro de suas ruas é beneficiado com essa dorzinha subalterna e sem
vergonha, o que nos fez lisonjeados agora nos prejudica.
B: Ganhos que ser tornam perdas.
A: Ou perdas que se tornam
ganhos...
(Pausa)
A: E valeu a pena?
B: Não sei... Talvez, já
que eu prometi a mim mesmo que depois que desinflamar e cicatrizar, eu nunca mais me deixarei abalar por terremotos...
A: Impossível.
(
“A” assusta-se. Soa sirene)
B: O que foi?
A: Dei-me conta de que
estamos ambos aqui. Me abraça?
B: Sim, mas só por um
instante.
( Se abraçam...)
( Contemplam-se, tocam-se, cheiram-se,
apreciam-se. Rostos muito próximos, se olham por um tempo e finalmente se
beijam, um beijo calmo e demorado. A afasta-se abruptamente, e ambos ficam
sentados, de costas um para o outro)
A: (Um pouco irada) O que você faria se eu morresse hoje?
B: (Silêncio. Pausa. E
diz mais baixo, como consigo mesmo) Morreria amanhã.
A: (Voltando ao normal)
O que vamos fazer agora?
B: Seguir.
A: Seguir pra onde?
B: Não sei, só
seguir....adiante.
( A se agarra em B)
A: Mas a cidade era tão
bonita, o que poderia haver além dela? Não sei se quero olhar adiante, se
não... viver da memória do que era. Não, não quero seguir...
é tudo sempre isso, a mesma coisa...e quando nos acostumamos a uma nova
paisagem, novo terremoto, eu sei o que me aguarda. Nada além de prazer e
beleza, seguidos de sublime dor...seguida da renovação da minha esperança,
seguida de....a gente sempre acaba se sentido como que roubado. É isso, eu fui
roubada.
B: É difícil mesmo, olhar
para outra direção, quando a paisagem atrás de nós foi tão bonita.
A: Foi?
B: Era...
A: E já não é...
B: Não, é isso agora. Resquícios.
(Soa
sirene. Silêncio, abrem enlatados e comem,um deles enrola-se em cobertor...como
se estivesse frio)
A: O sol já vai nascer.
B: Não ainda... na verdade
está se pondo.
A: Sério?
B: Sim. Observe a dança
das cores no céu: cobre, lilás, azuis.
A: Está nascendo o sol. (fala
com esperança)
B: Não, logo a noite
absoluta cairá sobre nós. E depois...
A: Depois o que? (tem
medo)
B: Um silêncio inabalável.
(pausa - A olha pro B)
A: Você tem medo.
B: Do silêncio não, do
escuro tenho.
A: O escuro desconhece as
coisas, desconhece a gente.
(pausa)
B: E os outros, todos?
A: Continuam... ou estão
mortos como nós.
(ajeitam mais coisas)
A: Alguma lembrança da
cidade?
B: Só essa foto e uma
xícara quebrada.
A: Eu, só uma canção pela
metade. A canção da última da tarde da cidade.
B: Canta...
A: Não posso, estou sem
voz quase... foi a fumaça do que ruiu.
B: Ah... mas cante, cante
baixinho.
A: Está bem.
(Canta enquanto arrumam as
coisas, montando suas trouxas para seguirem e em pé se preparam para seguir Soa a sirene..)
B: Boa sorte.
A: Boa sorte também.
Espero que não sobreviva.
B: Pra você também, o
mesmo, e que seja doce.
A: Assim será.
( Contemplam os escombros pela
última vez. Trocam tijolos e seguem caminhos diferentes.B faz menção de sair,
mas para no caminho e fica a olhar A, que parte. Cortam
o cordão que os liga até agora, quase imperceptível.)
B: Eu olho pra cidade de hoje e tento reconhecer os traços do
de antes... mas aquilo que foi...não está. Passo horas olhando, procurando
vestígios nas frestas das portas que sobraram, nas pedras da rua, nos fios de
aço que algum dia amparavam os telhados das casas... mas nada, nada quase,
muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido, e o que sobrou foram
corpos modificados.

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