sábado, 7 de junho de 2014

Dramaturgia



Excombros (2010)

Por Maria Cláudia Lopes e Renan Bonito.

( Duas pessoas num espaço de ruínas, tijolos quebrados, pó, areia, objetos esdrúxulos, carrinho de supermercado abandonado...escombros.Elas tem os olhos abalados, bem abertos... ninam-se para se proteger do frio, num balanço sutil. Ao fundo a trilha  é de um piano macio mas intenso Existe um tempo vivo entre as falas. Soa sirene.)

A: Que coisa grandiosa não? (contemplando os escombros)
B: Grandiosa...
B: E você? (pequena pausa) Quase não pisca...
A: É... já não, e quase não falo também, as palavras escapam. Só consigo falar disso, o que houve, o ocorrido... somente.
B: Sei... sei.
A: Sabe?
B: Sei...
(pausa)
A: Algum sobrevivente?
B: Nenhum não...
A: Nem você?
B: Nem eu...
A: Nem eu tão pouco.

(Pausa. Começam a arrumar os tijolos. Soa sirene )

A: Mas foi melhor assim...
B: Será?
A: Foi, sem dúvidas. Havia sinais de estragos eminentes... inevitável mesmo.
B: Você fazia o que....quando...você sabe?
A: Sonhava.
B: Claro... e doeu?
A: Não, assustou um pouco, na hora. Agora sim dói um pouco todo dia.
B: Abalos sísmicos são assim.
A: Abalos. Ao menos estivemos aqui na cidade, cruzando suas ruas de mármore. Admirando a arquitetura de seus edifícios sublimes... não é?
B: Lavando roupa!
A: O que?
B: O que eu fazia... eu lavava roupa.
A: Ficaram limpas?

(Não há resposta, pausa. Vão arrumar mais tijolos e posicionam-se para a primeira ruptura)
(A chega com uma mala cheia e entrega a B, sendo que este último pára,se assusta, e começa a vasculhar, e a partir do momento que percebe o que realmente é, começa um leve desespero. 
Falando mais consigo)
A: Não.
 ( B devaneia sobre os resquícios da velha cidade)
B: Eu olho pra cidade de hoje e tento reconhecer os traços do de antes... mas aquilo que foi...não está. Passo horas olhando, procurando vestígios nas frestas das portas que sobraram, nas pedras da rua, nos fios de aço que algum dia amparavam os telhados das casas... mas nada, nada quase, muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido, e o que sobrou foram corpos modificados.
A: Entendo... entendo que a gente procura no novo o velho, não é? E encontra? Encontra só vestígio: um cheiro esquecido, uma palavra que tenha rompido o silêncio, a lembrança de um raio de sol que pousou sua sorte na janela de um edifício demolido agora... (tentando quebrar a nostalgia) Mas você nunca pensou que as coisas se constroem umas sobre as outras? Tudo que virá de alguma forma virá....sendo construído sobre esses excombros, e sobre o que eles foram, são.
B: Não, pensar nisso é o mesmo que pensar que viveremos na mesma cidade, fundando o novo sobre o velho... eu gosto de pensar que o que foi destruído desaparece, e o que virá seria inteiramente a coisa nova. Outra cidade. Desconfio no entanto do que está por vir...
A: Pois eu sempre penso nisso – que uma coisa nova cresce da velha, estes restos adubam o chão do que será a nova cidade.
(Pausa.Ecoa sirene. Fazem menção de começar a organizar os escombros, construir a nova cidade)
B: Espere! Um minuto antes para reverência aos mortos!
A: Nós?
B: Também.
( Param um minuto e depois começam a reconstrução do que seja novo.)
B: Alguma coisa sua sobrou?
A: Quase nada... um braço, uma parte do fígado, um olho míope. O que ficou mesmo de mim, acho que nem é meu. Você?
B: Eu só saí arranhado, mas daí me arranhei mais, pra não me sentir tão diferente.
A: (Pausa) Me mostra?
B: Mostro. Mas antes conversemos, pois a fala vai amenizar o seu olhar... (Sentam) Doeu?
A: O que?
B: Você sabe... a mudança... a perda... tudo que levou você a estar aqui agora da forma como eu te vejo.
A: Doeu... muito. Mas falemos do que está ainda por vir. Para que se ater aos retrovisores han? Com caminhos inéditos pela frente?...
 B: Mas ainda preciso te contar velhas histórias Uma velha cigana, que passou e sobreviveu dezenas de vezes, salvando-se destes abalos ensinou-me uma forma de amenizar tudo: em cima da cicatriz criar outra.
A: Eu preciso ver ...
B: (Pega o figurino para ir levantando para mostrar a coxa machucada) O oue eu fiz ingenuamente, desconhecendo o fato de  que uma marca, uma cicatriz é sempre uma nova, nunca substitui outra. (Mostra a perna)
( A contempla a cicatriz)
A: É... uma cicatriz é algo absolutamente único, cada qual com as suas peculiaridades. O que está perdido, está perdido. Nenhuma cicatriz substitui a outra. Muito menos protege a sua pele para as que virão...
B: Fiz porque assim eu não pensaria em você sabe o que.
A: Sei...
B: E a dor física fica tão latejante, literalmente, que você não pensa mais em nada. Apenas no que arde...
A: É?
B: É, só que a cada passo que eu dou, a mente no instante lembra de suas causas , e o íntimo simplesmente dispara... pois, não importa mais que dor seja. O que importa é que aconteceu.
A: E que nada voltará.
B: Exatamente. A não ser outras cicatrizes mais leves ou duras.
A: Quem viver na cidade e apreciar o cheiro de suas ruas é beneficiado com essa dorzinha subalterna e sem vergonha, o que nos fez lisonjeados agora nos prejudica.
B: Ganhos que ser tornam perdas.
A: Ou perdas que se tornam ganhos...
(Pausa)
A: E valeu a pena?
B: Não sei... Talvez, já que eu prometi a mim mesmo que depois que desinflamar e cicatrizar, eu nunca mais me deixarei abalar por terremotos...
 A: Impossível.
( “A” assusta-se. Soa  sirene)
B: O que foi?
A: Dei-me conta de que estamos ambos aqui. Me abraça?
B: Sim, mas só por um instante.
( Se abraçam...)

 ( Contemplam-se, tocam-se, cheiram-se, apreciam-se. Rostos muito próximos, se olham por um tempo e finalmente se beijam, um beijo calmo e demorado. A afasta-se abruptamente, e ambos ficam sentados, de costas um para o outro)

A: (Um pouco irada) O que você faria se eu morresse hoje?
B: (Silêncio. Pausa. E diz mais baixo, como consigo mesmo) Morreria amanhã.
A: (Voltando ao normal) O que vamos fazer agora?
B: Seguir.
A: Seguir pra onde?
B: Não sei, só seguir....adiante.
( A se agarra em B)
A: Mas a cidade era tão bonita, o que poderia haver além dela? Não sei se quero olhar adiante, se não... viver da memória do que era. Não, não quero seguir... é tudo sempre isso, a mesma coisa...e quando nos acostumamos a uma nova paisagem, novo terremoto, eu sei o que me aguarda. Nada além de prazer e beleza, seguidos de sublime dor...seguida da renovação da minha esperança, seguida de....a gente sempre acaba se sentido como que roubado. É isso, eu fui roubada.
B: É difícil mesmo, olhar para outra direção, quando a paisagem atrás de nós foi tão bonita.
A: Foi?
B: Era...
A: E já não é...
B: Não, é isso agora. Resquícios.

(Soa sirene. Silêncio, abrem enlatados e comem,um deles enrola-se em cobertor...como se estivesse frio)

A: O sol já vai nascer.
B: Não ainda... na verdade está se pondo.
A: Sério?
B: Sim. Observe a dança das cores no céu: cobre, lilás, azuis.
A: Está nascendo o sol. (fala com esperança)
B: Não, logo a noite absoluta cairá sobre nós. E depois...
A: Depois o que? (tem medo)
B: Um silêncio inabalável.
(pausa - A olha pro B)
A: Você tem medo.
B: Do silêncio não, do escuro tenho.
A: O escuro desconhece as coisas, desconhece a gente.
(pausa)
B: E os outros, todos?
A: Continuam... ou estão mortos como nós.
(ajeitam mais coisas)
A: Alguma lembrança da cidade?
B: Só essa foto e uma xícara quebrada.
A: Eu, só uma canção pela metade. A canção da última da tarde da cidade.
B: Canta...
A: Não posso, estou sem voz quase... foi a fumaça do que ruiu.
B: Ah... mas cante, cante baixinho.
A: Está bem.

(Canta enquanto arrumam as coisas, montando suas trouxas para seguirem e em pé se preparam para seguir Soa a sirene..)

B: Boa sorte.
A: Boa sorte também. Espero que não sobreviva.
B: Pra você também, o mesmo, e que seja doce.
A: Assim será.

( Contemplam os escombros pela última vez. Trocam tijolos e seguem caminhos diferentes.B faz menção de sair, mas para no caminho e fica a olhar A, que parte. Cortam o cordão que os liga até agora, quase imperceptível.)

B: Eu olho pra cidade de hoje e tento reconhecer os traços do de antes... mas aquilo que foi...não está. Passo horas olhando, procurando vestígios nas frestas das portas que sobraram, nas pedras da rua, nos fios de aço que algum dia amparavam os telhados das casas... mas nada, nada quase, muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido, e o que sobrou foram corpos modificados.


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