. poema urbano: a Vida deitada.
(Para ser lido em voz alta; oscilando
entre silêncios nas partes de cor)
Maria Cláudia S. Lopes
Automóvel
placas buzinas motocicleta asfalto semáforos buzina automóvel a senhora que
olha da janela passos móveis usados placas plaquetas um corpo deitado sobre
cobertor ronco de motores rádio trânsito buzinas motocicletas janelas
empilhadas tocos de cigarro empilhados muros e metrôs empilhados carrinhos de
supermercado suicidas sacos plásticos homens trabalhando sem camisa ao lado dos
pombos e pardais avenidas postes gatos que olham da janela os automóveis usados
buzinas que olham da janela passos empilhados sobre o cobertor.
Algumas
samambaias sonham.
Ela não sabia ser... mas ele gentilmente, com a graça de um
cavalheiro, e muito pacientemente, esperava. Ela era do tipo esquecida das
ternuras de ser. Ele não tinha um tipo – a bunda do tamanho certo, boas
maneiras - estava aberto às coisas que se ofereciam tímidas ou vorazes, não
importava. Tinha aprendido a aceitar o amargo ou doce como eram: amargo, doce...
e valorizava cada dose mínima de afeto, fosse ele seco ou úmido, abundante ou
discreto. Desde pequeno aprendera a receber o que estivesse lá para ser dado a
ele, na mesa e na cama.
Tinha um cheiro vivido na pele, como quem vem de um lugar quente
e estranho, que para ela era muito custoso acreditar que existisse. Ela pisava
sempre nos pés dos homens com quem dançava porque tinha medo, mas o seu pulmão
floria, chovia, bocejava, era uma força da natureza. Seu pulmão tinha esse movimento
de se rir das coisas pequeninas.
Ele era um homem de costumes rígidos e que percorria caminhos
familiares. Ela não era acostumada. No entanto, ele era um homem e ela uma
mulher, e isso era o que importava. Porque o que ela queria era ter o seu banho
cheirado por um homem, ter visto o vestido, ter um homem que lhe levantasse a
saia e que fosse ao mesmo tempo meigo e indecente, que invadisse com a mansidão
de uma gaivota a praia dos seus sonhos repartidos. E ele queria, além de ser
quisto homem, uma flor que desabrochar, “o segredo de uma fechadura”, queria
tocar uma mulher, pelos olhos, por dentro e fundo. No entanto, quase não se
viram.
Orquestra
desagradável de seres que passam pensam transitam reclamam tem esperança no
futuro cinza um sol sai clareia cinza é chuva nuvem e cheiros desagradáveis de
seres que automóveis placas passam e transitam sobre cobertor o corpo semáforo a rádio trânsito a
manifestação demandas humanas para corrigir demandas humanas uma grande roda
gigante da miserável fortuna os automóveis móveis usados as pilhas humanas
empilhadas e senhora que olha o gato da janela pessoas pensam asfalto reclamam
buzina motocicletas tem esperança no futuro.
Porque ela queria alguém para quem esquentar as coisas: o leite,
o arroz, o corpo. Porque ela não sabia amar... e estava sempre por isso
tentando apreender aquela coisa arisca que chamava de amor, e esta coisa arisca
sempre estava a lhe escapar. Ela era cega, queria ter todas as coisas que não
podia ver, e como uma vespa cega ia atrás de flores sem conhecer-lhes o cheiro
e as cores por inteiro. E como toda mulher, era também insaciável. Não havia
nada - alimento, paisagem, coisa alguma que lhe aliviasse a fome. Nascera com
um buraco absurdo no meio do peito, que jamais poderia ser preenchido - pois
não é da natureza dos buracos serem preenchidos - e, embora ela soubesse disso,
escolhia ignorar, e a sua vida era uma busca infinda para tentar aniquilar
aquela fome, aquela sede de algo que não existia. Sua vida era toda movida pela
existência deste “rombo” – ao mesmo tempo corrosivo e fundamental.
Nisso eram o avesso os dois, porque ele se tinha um buraco..era
dono tranquilo e sereno. Ele olhava o buraco com aquela naturalidade quase
fria, ele estava a par do controle, da lógica, dos “fatos”... e andava bem
devagar, com passos justos, justos demais. Tinha no peito algo preso que
ninguém nunca havia tocado, nem ele mesmo, nascera com isso, essa coisa presa,
esse nó amarrado no meio do corpo e sua mãe não se deu conta ao acender
satisfeita, uma a uma, as velas de seu último aniversário. Este algo de preso
que o habitava queria muito voar, mas não se atrevia, ele não se dava conta por
inocência, era um homem muito inocente. Pensava, pensava que todos no mundo
fossem assim presos no peito, aceitava com pacata humildade essa maneira de
existir.
Ele não estava lá para preencher nada e nem para roubar nada que
não lhe pertencesse. Ela queria que ocupassem dentro dela todos os espaços
vazios. Ela, desesperadamente, queria ser roubada.
No
canto de uma esquina, anônimos, um casal desacelerando as paredes apressadas em
salivas lentas, lânguidos amassos. O mundo todo para paralisado. Em ralentado
abraço os passos agora todos em mínima velocidade. A língua que é quente e
avermelhada de leve textura áspera contra a outra viva, se umedecem e se
atritam desavisadas. Os lábios, as peles, os pêlos se afirmam ali, por se
tocarem, coexistentes. E há a sensação do desejo palpável que torna as calças
úmidas ou justas demais. E há o odor que nasce da vontade de extinguir proximidade
e distância e ser o outro, no outro. Desejo doendo, inflando, inflamando. Os hálitos
que lembram coisas muito antigas e esquecidas. As mãos que suam delicadamente e
não sabem mais se evitar, querendo ganhar mais e mais intimidade, ganhar
costumes. Um pudor puro e vencido, latente latindo.
O
desejo é a vida nos pedindo baixinho, vezes implorando que se cumpra.
Depois de dizer, entrava pela porta: olhos lânguidos,
timidamente doces e pernas nuas como as da lua, braços atentos como os de uma
serpente, seios cantando uma ópera. No coração um buraco rouco que aspirava
como uma máquina o que via pela frente, e na barriga carregava uma menininha
que queria ser aprovada, amada, cuidada, que queria ser o que era, uma menina. Nos
dentes um pouco de veneno, só um pouquinho, para se defender do passado. Ele
recebia aquilo acostumado, e também com medo, confuso, sem saber o que fazer
com tudo que recebia. Entregaram-se ao desejo, vida em súplica, sexo é oração.
A vida pronta.
Suas peles gemiam palavras incompreensíveis, suas bocas
transpiravam luz, seus ouvidos cantavam. Ela se esforçava em acreditar que o
buraco poderia estar menor, e rezava em segredo para que ele não se assustasse
se ela o chamasse, naquele instante, de “meu amor”; e se esforçava para acreditar
que aquilo era realmente muito importante quando, algo nela saberia contar, que
tudo nasce e morre dentro do desejo. Ele não pensava muito, não mais que o
suficiente, se dava ao prazer no instante, como em poucos momentos fazia, e
queria sentir-se bom, queria que todos soubessem que era bom.
Só
se abraçam, em silêncio, se acariciam, se reconhecem. Têm os olhos fechados
para tudo. Os órgãos tem pressa, apalpam urgências, compartilham fomes.
Poderia ser um presente o espaço para fazer-se mulher e homem, um
no outro, pelo outro, através? Ela pensava, naquele minuto de cio, que havia de
ser por razão essa, é que as pessoas chamam o sexo de “fazer amor”, e bem ou
mal ele se fazia, do tamanho que era, na cor que tinha. Ele era um segredo tão
simples de se ver, era apenas o que fazia a ela e sem mais, como uma grande
reticência sobre a cama. Tendo aliviado a sede de seus corpos, estendiam seus
silêncios perigosos sobre o lençol azul, e a luz... que carinhosamente
penetrava através da janela semi aberta deitava-se sobre as barrigas nuas.
E
contra: sirene avança sinal rui o cheiro do restaurante barato os horários os
preços a gasolina o jornal o assunto do trânsito a notícia da morte por asfixia
a alergia a poluição a dengue os postes a polícia militar as decisões o plano
de carreira o projeto de vida a promoção o aspirador a comida do gato a
indústria imobiliária automobilística a cópia das chaves o lixo da rua as
gravatas os engraxates os restos os sustos o lixo as lojas os tocos de cigarro
molhados o cheiro de cigarro aceso o engarrafamento os desencontros os
desacertos os desalinhos a calçada a falta de espaço o torto o hostil o surdo
Como uma lagoa muito delicada e branca, quase translúcida,
cheirando a mar e ao que é velho... a Vida também se deitava - viscosa,
plácida, preguiçosa e um pouco ressentida por não cumprir-se em nove meses mais
bela e pronta.. lagoa branca no deserto de seus ventres.
No
canto da esquina anônima, quase em frente, um só pé no paralelepípedo, os
outros no alto – mãos que se acalentam, se apertam e visitam nuca, quadris
tímidos, punho, pescoço. Dançam quase lentos, ávidos oásis, contra o ruído das
ruas. Amolecendo concretos e ponteiros, derretendo o duro... sendo gesto, poema
feito. Suspensos e Salvos.
Ela cantava então mudas canções de ninar e ele dormia embalado
sem saber, sumia para percorrer os sonhos dos quais jamais se lembraria.
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