sexta-feira, 23 de maio de 2014

poema urbano (2013)


. poema urbano: a Vida deitada.
(Para ser lido em voz alta; oscilando entre silêncios nas partes de cor)
Maria Cláudia S. Lopes

Automóvel placas buzinas motocicleta asfalto semáforos buzina automóvel a senhora que olha da janela passos móveis usados placas plaquetas um corpo deitado sobre cobertor ronco de motores rádio trânsito buzinas motocicletas janelas empilhadas tocos de cigarro empilhados muros e metrôs empilhados carrinhos de supermercado suicidas sacos plásticos homens trabalhando sem camisa ao lado dos pombos e pardais avenidas postes gatos que olham da janela os automóveis usados buzinas que olham da janela passos empilhados sobre o cobertor.
Algumas samambaias sonham.
Ela não sabia ser... mas ele gentilmente, com a graça de um cavalheiro, e muito pacientemente, esperava. Ela era do tipo esquecida das ternuras de ser. Ele não tinha um tipo – a bunda do tamanho certo, boas maneiras - estava aberto às coisas que se ofereciam tímidas ou vorazes, não importava. Tinha aprendido a aceitar o amargo ou doce como eram: amargo, doce... e valorizava cada dose mínima de afeto, fosse ele seco ou úmido, abundante ou discreto. Desde pequeno aprendera a receber o que estivesse lá para ser dado a ele, na mesa e na cama.
Tinha um cheiro vivido na pele, como quem vem de um lugar quente e estranho, que para ela era muito custoso acreditar que existisse. Ela pisava sempre nos pés dos homens com quem dançava porque tinha medo, mas o seu pulmão floria, chovia, bocejava, era uma força da natureza. Seu pulmão tinha esse movimento de se rir das coisas pequeninas.
Ele era um homem de costumes rígidos e que percorria caminhos familiares. Ela não era acostumada. No entanto, ele era um homem e ela uma mulher, e isso era o que importava. Porque o que ela queria era ter o seu banho cheirado por um homem, ter visto o vestido, ter um homem que lhe levantasse a saia e que fosse ao mesmo tempo meigo e indecente, que invadisse com a mansidão de uma gaivota a praia dos seus sonhos repartidos. E ele queria, além de ser quisto homem, uma flor que desabrochar, “o segredo de uma fechadura”, queria tocar uma mulher, pelos olhos, por dentro e fundo. No entanto, quase não se viram.
Orquestra desagradável de seres que passam pensam transitam reclamam tem esperança no futuro cinza um sol sai clareia cinza é chuva nuvem e cheiros desagradáveis de seres que automóveis placas passam e transitam sobre  cobertor o corpo semáforo a rádio trânsito a manifestação demandas humanas para corrigir demandas humanas uma grande roda gigante da miserável fortuna os automóveis móveis usados as pilhas humanas empilhadas e senhora que olha o gato da janela pessoas pensam asfalto reclamam buzina motocicletas tem esperança no futuro.
Porque ela queria alguém para quem esquentar as coisas: o leite, o arroz, o corpo. Porque ela não sabia amar... e estava sempre por isso tentando apreender aquela coisa arisca que chamava de amor, e esta coisa arisca sempre estava a lhe escapar. Ela era cega, queria ter todas as coisas que não podia ver, e como uma vespa cega ia atrás de flores sem conhecer-lhes o cheiro e as cores por inteiro. E como toda mulher, era também insaciável. Não havia nada - alimento, paisagem, coisa alguma que lhe aliviasse a fome. Nascera com um buraco absurdo no meio do peito, que jamais poderia ser preenchido - pois não é da natureza dos buracos serem preenchidos - e, embora ela soubesse disso, escolhia ignorar, e a sua vida era uma busca infinda para tentar aniquilar aquela fome, aquela sede de algo que não existia. Sua vida era toda movida pela existência deste “rombo” – ao mesmo tempo corrosivo e fundamental.
Nisso eram o avesso os dois, porque ele se tinha um buraco..era dono tranquilo e sereno. Ele olhava o buraco com aquela naturalidade quase fria, ele estava a par do controle, da lógica, dos “fatos”... e andava bem devagar, com passos justos, justos demais. Tinha no peito algo preso que ninguém nunca havia tocado, nem ele mesmo, nascera com isso, essa coisa presa, esse nó amarrado no meio do corpo e sua mãe não se deu conta ao acender satisfeita, uma a uma, as velas de seu último aniversário. Este algo de preso que o habitava queria muito voar, mas não se atrevia, ele não se dava conta por inocência, era um homem muito inocente. Pensava, pensava que todos no mundo fossem assim presos no peito, aceitava com pacata humildade essa maneira de existir.
Ele não estava lá para preencher nada e nem para roubar nada que não lhe pertencesse. Ela queria que ocupassem dentro dela todos os espaços vazios. Ela, desesperadamente, queria ser roubada.
No canto de uma esquina, anônimos, um casal desacelerando as paredes apressadas em salivas lentas, lânguidos amassos. O mundo todo para paralisado. Em ralentado abraço os passos agora todos em mínima velocidade. A língua que é quente e avermelhada de leve textura áspera contra a outra viva, se umedecem e se atritam desavisadas. Os lábios, as peles, os pêlos se afirmam ali, por se tocarem, coexistentes. E há a sensação do desejo palpável que torna as calças úmidas ou justas demais. E há o odor que nasce da vontade de extinguir proximidade e distância e ser o outro, no outro. Desejo doendo, inflando, inflamando. Os hálitos que lembram coisas muito antigas e esquecidas. As mãos que suam delicadamente e não sabem mais se evitar, querendo ganhar mais e mais intimidade, ganhar costumes. Um pudor puro e vencido, latente latindo.
O desejo é a vida nos pedindo baixinho, vezes implorando que se cumpra.
Depois de dizer, entrava pela porta: olhos lânguidos, timidamente doces e pernas nuas como as da lua, braços atentos como os de uma serpente, seios cantando uma ópera. No coração um buraco rouco que aspirava como uma máquina o que via pela frente, e na barriga carregava uma menininha que queria ser aprovada, amada, cuidada, que queria ser o que era, uma menina. Nos dentes um pouco de veneno, só um pouquinho, para se defender do passado. Ele recebia aquilo acostumado, e também com medo, confuso, sem saber o que fazer com tudo que recebia. Entregaram-se ao desejo, vida em súplica, sexo é oração. A vida pronta.
Suas peles gemiam palavras incompreensíveis, suas bocas transpiravam luz, seus ouvidos cantavam. Ela se esforçava em acreditar que o buraco poderia estar menor, e rezava em segredo para que ele não se assustasse se ela o chamasse, naquele instante, de “meu amor”; e se esforçava para acreditar que aquilo era realmente muito importante quando, algo nela saberia contar, que tudo nasce e morre dentro do desejo. Ele não pensava muito, não mais que o suficiente, se dava ao prazer no instante, como em poucos momentos fazia, e queria sentir-se bom, queria que todos soubessem que era bom.
Só se abraçam, em silêncio, se acariciam, se reconhecem. Têm os olhos fechados para tudo. Os órgãos tem pressa, apalpam urgências, compartilham fomes.
Poderia ser um presente o espaço para fazer-se mulher e homem, um no outro, pelo outro, através? Ela pensava, naquele minuto de cio, que havia de ser por razão essa, é que as pessoas chamam o sexo de “fazer amor”, e bem ou mal ele se fazia, do tamanho que era, na cor que tinha. Ele era um segredo tão simples de se ver, era apenas o que fazia a ela e sem mais, como uma grande reticência sobre a cama. Tendo aliviado a sede de seus corpos, estendiam seus silêncios perigosos sobre o lençol azul, e a luz... que carinhosamente penetrava através da janela semi aberta deitava-se sobre as barrigas nuas.
E contra: sirene avança sinal rui o cheiro do restaurante barato os horários os preços a gasolina o jornal o assunto do trânsito a notícia da morte por asfixia a alergia a poluição a dengue os postes a polícia militar as decisões o plano de carreira o projeto de vida a promoção o aspirador a comida do gato a indústria imobiliária automobilística a cópia das chaves o lixo da rua as gravatas os engraxates os restos os sustos o lixo as lojas os tocos de cigarro molhados o cheiro de cigarro aceso o engarrafamento os desencontros os desacertos os desalinhos a calçada a falta de espaço o torto o hostil o surdo
Como uma lagoa muito delicada e branca, quase translúcida, cheirando a mar e ao que é velho... a Vida também se deitava - viscosa, plácida, preguiçosa e um pouco ressentida por não cumprir-se em nove meses mais bela e pronta.. lagoa branca no deserto de seus ventres.
No canto da esquina anônima, quase em frente, um só pé no paralelepípedo, os outros no alto – mãos que se acalentam, se apertam e visitam nuca, quadris tímidos, punho, pescoço. Dançam quase lentos, ávidos oásis, contra o ruído das ruas. Amolecendo concretos e ponteiros, derretendo o duro... sendo gesto, poema feito. Suspensos e Salvos.
Ela cantava então mudas canções de ninar e ele dormia embalado sem saber, sumia para percorrer os sonhos dos quais jamais se lembraria.


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