.Ensaio (breve) sobre a saudade.
( Para ser lido em voz alta)
Maria Cláudia S. Lopes
Pode ser que porque aqui, no
Brasil, a palavra SAUDADE exista, o recheio dela passe a existir melhor e mais
contornado também. Estamos sempre às voltas com essa grande dúvida... se as
coisas estão antes das palavras ou por elas. E porque a coisa existe,
precisamos falar sobre ela, é assim para alguns, para mim certamente é.
Saudade:
Pode ser um reencontro
telepático, e provavelmente solitário, com uma ausência presente. Quando de
repente de uma faixa de cd (ou boina que se vê numa feira ao ar livre enquanto
se passeia), inesperadamente, o presente te pesque uma presença ausente. Muitos
se enganam ao afirmar que saudade é um sentimento ligado ao passado, não é
assim. A saudade é uma experiência do presente, uma espécie de “bricolagem” de:
um desejo que desperta, memórias inquietas que nos visitam, e o desfrute da
ausência.
Esse desejo pode ser um desejo
pequeno de uma coisa pequena - como olhar, abraçar ou contar alguma coisa a alguém.
Pode ser que ele cresça até um ponto que se torne unbearable... e por isso é preciso ter estratégias para domesticar
a saudade mais selvagem, para que ela não te arranhe ou morda ou machuque.
Acredite, isto nada tem a ver com encontros virtuais ou telefone, pois a
saudade passa a ser por si, e não depende mais de um outro. A saudade é a sua
relação com uma ausência presente, e ela pode aumentar, continuar, até mesmo
depois de revermos ou conversarmos com o ser disparador da saudade. As
mencionadas estratégias não podem ser ditas aqui - são extremamente pessoais e
cada qual tem de criar as suas. Aviso que tentar matar a saudade pode ser
especialmente perigoso, recorrer às pequenas ações que trazem uma ilusão de
presença: como rever um filme, ou ver uma música que fez parte de momentos do “nós”...
ou mesmo recuperar uma receita de que se tem saudade para comer sozinho. Pode
ser o seu fim, só intensificará a selvageria da saudade, pois tentar matar a
saudade é vivê-la mais e mais.
Pode ser que em alguma manhã de
um dia mais cinza, você amanheça com aquela peneira mais furada, aquela peneira
fina, tênue que separa os tempos, os quais nomeamos – passado, presente,
futuro...e neste dia pode ser que o calor do cobertor quase aleatoriamente te
lembre um corpo que esteve perto, e passa a estar. Memórias instantâneas são
aquelas que a gente não vai buscar para viver ou tentar matar a saudade... as
memórias instantâneas são muito espontâneas, elas são o momento de
entrelaçamento entre esses tempos referidos.
Pode até ser que seja uma manhã ensolarada e uma borboletinha amarela
atravesse as plantas da sua varanda, e aquele incidente quase insignificante te
faça lembrar da beleza que é o amor, e te faça pensar em alguém...pode ser que
enquanto essa borboleta passe, te atravessando o dia, a vida, ela consiga então
pescar uma lembrança remota de outras borboletas e cores, e de alguma tarde de
cachoeira. Saudade é amor que quer ser amado, e busca pretextos para ser.
Esta é uma apologia à saudade.
Pode ser que ela te assuste, te traga um receio de apego ao passado ou de falta
de conexão com o momento presente. Mas a saudade é o reconhecimento do tamanho,
volume, importância, valor, raridade das
presenças que parecem não estar... mas estão em nossas vidas. Claro que cautela
é necessária... muito cuidado mesmo. A saudade pode arrastar consigo uma
melancolia molhada, um ar rançoso, um hálito de túmulo, teias de aranha,
páginas amarelas – pode ser que ela deixe seus pulmões pesados, que te faça
sentir afogado, afundado no fundo, chovendo e nublado, como se o mundo
estivesse se desbotando porque toda a alegria se ausentou com um tempo que
nunca voltará - mas esse é um outro tipo de saudade, é uma saudade sem esperança,
sem importância, é uma saudade de si, uma saudade que sinaliza a real ausência
de algo que até ali não se pode nomear bem. Escute-a, ela pode te apontar
caminhos para outras saudades mais ensolaradas.
Como comecei a contar... há
muitos tipos e tamanhos de saudade. Há uma delas que se assemelha a uma pequena
dor (de dente, de pé, de pescoço) ela está ali o tempo todo, quase, mas não
chega a incomodar a ponto de tomarmos uma atitude concreta. Há uma outra que é
uma saudade simulada, um simulacro de saudade, é o desejo de senti-la, ou
quando achamos que deveríamos sentir mas não estamos sentindo exatamente...Há a
saudade maré, que é totalmente influenciada pela lua, e pode crescer invasiva
ou fazer um barulhinho de água ao longe. A saudade é a consciência de uma
presença, regardless de todas as
provas materiais que permitiriam comprová-la.
A saudade não é o medo do
abandono ou do esquecimento, a saudade tem a sua ética que é a de jamais exigir
reciprocidade, a saudade não é carência consequência de alguma solidão física
ou anímica. A saudade é um encontro, é um momento de contemplação do próprio tempo
em si, do amor, da presença, do desejo. Ela só existe porque existe algo em nós
que sabe o quanto vale uma presença. A saudade é desfrutável para quem não lhe
atribui o peso dramático das mortes contidas na vida. Ela pode te acariciar, te
fazer saber que em sua vida existem coisas a serem cuidadas, reverenciadas. É
isso: a saudade pode ser... pode ser que ela seja uma reverência à vida.
Pedindo licença para lê-lo em voz alta no próximo Sarau da Therê aqui no Rio!
ResponderExcluirfico lisonjeada flor, claro que podes ler! beijão!
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