segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Véspera de ano novo. Avaliações...reflexões...penso o quanto eu gostaria de me conectar mais com as belezas da vida. Penso em Rubem Alves e seu texto do “ano a mais de vida”. Penso em meu pai. Penso nas imperfeições humanas, minhas, nossas...Penso nos redemoinhos de dor aos quais nosso próprio pensamento nos submete. Penso que quero ver melhor, que quero fazer o que me faz feliz. Penso em escrever ainda mais.

Pensando nisso...penso no blog, nessa nova tentativa de manter um blog, porque escrever é como regar a flor de dentro, porque de algum modo colocar flores aqui talvez seja melhor que não colocar...porque nunca teremos o controle sobre o que acontece às coisas que criamos...sejam pequenas ou grandes...romances, parágrafos, bilhetes de despedida etc...

Ser escritor é escrever como quem rega a flor do peito.

Não sei se chegarei a ser uma das que são chamadas em bienais
Não sei se me reconhecerão ou me convidarão para prefácios importantes
Mas a literatura, seja essa da informalidade, seja a ficção, seja para crianças crescidas ou adultos ainda pequenos...ela é necessária à despoluição dos jardins, “escrever é um tesouro” como disse bem Mario Vargas Llosa...o reconhecimento é bom, mas ele não é o que faz um bom escritor, necessariamente.


Neste ano que chega pretendo regar com carinho todos os meus jardins, e fazer como Quintana, esperar as borboletas chegarem, em vez de caça-las.

sábado, 5 de julho de 2014


Não quero que este seja um espaço às moscas...
quero que seja uma teia.

O que tenho a pa(lavrar)?
daquilo que se derrama da palavra e que fica de fora.
a existência em si - vida sendo, lendo, sendo, nem só amedrontamentos e o terrível
nem apenas acolhimento e primavera, mas o justo dos dois, simultâneos
e o afora do julgamento, o que nem bom nem mal, o bom e mal, o nem....
o zen...

há um crocodilo gigante que devora uma menina e a transporta em ritual aquático de iniciação
para uma outra vida, quem já de dizer que isto é destruição? o dente do crocodilo, corta, submerge, leva, mata, rasga e é salvação.

sábado, 7 de junho de 2014

quick paragraphs 1

I was suddendly thinking about rituals, little rituals in our daily lives, and then maybe about the importance of ritualizing our acts.To turn most of each single thing we do into something meaningful. Paying attention on how things are being done - being aware of how we do the "little" things.

 It´s so easy to be disconnected of ourselves, of our actions, thoughts, feelings...disconnected from our own choices. I don´t know why...but suddendly I started to wonder how our lives would be like if we faced waht it seems like small choices as rituals ( where all things are there for a reason). How are we spendind our time on this planet? How are we looking at other people? How are we doing our jobs? How are we making our choices of meals, of companies, of actions, of habits? Just a wonderment.

As I see for some reason am having more visiters from english speakers, from now on I will also write in english. Hope you keep coming, and my words can bring you niceness ( does that word exist?) 

Dramaturgia



Excombros (2010)

Por Maria Cláudia Lopes e Renan Bonito.

( Duas pessoas num espaço de ruínas, tijolos quebrados, pó, areia, objetos esdrúxulos, carrinho de supermercado abandonado...escombros.Elas tem os olhos abalados, bem abertos... ninam-se para se proteger do frio, num balanço sutil. Ao fundo a trilha  é de um piano macio mas intenso Existe um tempo vivo entre as falas. Soa sirene.)

A: Que coisa grandiosa não? (contemplando os escombros)
B: Grandiosa...
B: E você? (pequena pausa) Quase não pisca...
A: É... já não, e quase não falo também, as palavras escapam. Só consigo falar disso, o que houve, o ocorrido... somente.
B: Sei... sei.
A: Sabe?
B: Sei...
(pausa)
A: Algum sobrevivente?
B: Nenhum não...
A: Nem você?
B: Nem eu...
A: Nem eu tão pouco.

(Pausa. Começam a arrumar os tijolos. Soa sirene )

A: Mas foi melhor assim...
B: Será?
A: Foi, sem dúvidas. Havia sinais de estragos eminentes... inevitável mesmo.
B: Você fazia o que....quando...você sabe?
A: Sonhava.
B: Claro... e doeu?
A: Não, assustou um pouco, na hora. Agora sim dói um pouco todo dia.
B: Abalos sísmicos são assim.
A: Abalos. Ao menos estivemos aqui na cidade, cruzando suas ruas de mármore. Admirando a arquitetura de seus edifícios sublimes... não é?
B: Lavando roupa!
A: O que?
B: O que eu fazia... eu lavava roupa.
A: Ficaram limpas?

(Não há resposta, pausa. Vão arrumar mais tijolos e posicionam-se para a primeira ruptura)
(A chega com uma mala cheia e entrega a B, sendo que este último pára,se assusta, e começa a vasculhar, e a partir do momento que percebe o que realmente é, começa um leve desespero. 
Falando mais consigo)
A: Não.
 ( B devaneia sobre os resquícios da velha cidade)
B: Eu olho pra cidade de hoje e tento reconhecer os traços do de antes... mas aquilo que foi...não está. Passo horas olhando, procurando vestígios nas frestas das portas que sobraram, nas pedras da rua, nos fios de aço que algum dia amparavam os telhados das casas... mas nada, nada quase, muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido, e o que sobrou foram corpos modificados.
A: Entendo... entendo que a gente procura no novo o velho, não é? E encontra? Encontra só vestígio: um cheiro esquecido, uma palavra que tenha rompido o silêncio, a lembrança de um raio de sol que pousou sua sorte na janela de um edifício demolido agora... (tentando quebrar a nostalgia) Mas você nunca pensou que as coisas se constroem umas sobre as outras? Tudo que virá de alguma forma virá....sendo construído sobre esses excombros, e sobre o que eles foram, são.
B: Não, pensar nisso é o mesmo que pensar que viveremos na mesma cidade, fundando o novo sobre o velho... eu gosto de pensar que o que foi destruído desaparece, e o que virá seria inteiramente a coisa nova. Outra cidade. Desconfio no entanto do que está por vir...
A: Pois eu sempre penso nisso – que uma coisa nova cresce da velha, estes restos adubam o chão do que será a nova cidade.
(Pausa.Ecoa sirene. Fazem menção de começar a organizar os escombros, construir a nova cidade)
B: Espere! Um minuto antes para reverência aos mortos!
A: Nós?
B: Também.
( Param um minuto e depois começam a reconstrução do que seja novo.)
B: Alguma coisa sua sobrou?
A: Quase nada... um braço, uma parte do fígado, um olho míope. O que ficou mesmo de mim, acho que nem é meu. Você?
B: Eu só saí arranhado, mas daí me arranhei mais, pra não me sentir tão diferente.
A: (Pausa) Me mostra?
B: Mostro. Mas antes conversemos, pois a fala vai amenizar o seu olhar... (Sentam) Doeu?
A: O que?
B: Você sabe... a mudança... a perda... tudo que levou você a estar aqui agora da forma como eu te vejo.
A: Doeu... muito. Mas falemos do que está ainda por vir. Para que se ater aos retrovisores han? Com caminhos inéditos pela frente?...
 B: Mas ainda preciso te contar velhas histórias Uma velha cigana, que passou e sobreviveu dezenas de vezes, salvando-se destes abalos ensinou-me uma forma de amenizar tudo: em cima da cicatriz criar outra.
A: Eu preciso ver ...
B: (Pega o figurino para ir levantando para mostrar a coxa machucada) O oue eu fiz ingenuamente, desconhecendo o fato de  que uma marca, uma cicatriz é sempre uma nova, nunca substitui outra. (Mostra a perna)
( A contempla a cicatriz)
A: É... uma cicatriz é algo absolutamente único, cada qual com as suas peculiaridades. O que está perdido, está perdido. Nenhuma cicatriz substitui a outra. Muito menos protege a sua pele para as que virão...
B: Fiz porque assim eu não pensaria em você sabe o que.
A: Sei...
B: E a dor física fica tão latejante, literalmente, que você não pensa mais em nada. Apenas no que arde...
A: É?
B: É, só que a cada passo que eu dou, a mente no instante lembra de suas causas , e o íntimo simplesmente dispara... pois, não importa mais que dor seja. O que importa é que aconteceu.
A: E que nada voltará.
B: Exatamente. A não ser outras cicatrizes mais leves ou duras.
A: Quem viver na cidade e apreciar o cheiro de suas ruas é beneficiado com essa dorzinha subalterna e sem vergonha, o que nos fez lisonjeados agora nos prejudica.
B: Ganhos que ser tornam perdas.
A: Ou perdas que se tornam ganhos...
(Pausa)
A: E valeu a pena?
B: Não sei... Talvez, já que eu prometi a mim mesmo que depois que desinflamar e cicatrizar, eu nunca mais me deixarei abalar por terremotos...
 A: Impossível.
( “A” assusta-se. Soa  sirene)
B: O que foi?
A: Dei-me conta de que estamos ambos aqui. Me abraça?
B: Sim, mas só por um instante.
( Se abraçam...)

 ( Contemplam-se, tocam-se, cheiram-se, apreciam-se. Rostos muito próximos, se olham por um tempo e finalmente se beijam, um beijo calmo e demorado. A afasta-se abruptamente, e ambos ficam sentados, de costas um para o outro)

A: (Um pouco irada) O que você faria se eu morresse hoje?
B: (Silêncio. Pausa. E diz mais baixo, como consigo mesmo) Morreria amanhã.
A: (Voltando ao normal) O que vamos fazer agora?
B: Seguir.
A: Seguir pra onde?
B: Não sei, só seguir....adiante.
( A se agarra em B)
A: Mas a cidade era tão bonita, o que poderia haver além dela? Não sei se quero olhar adiante, se não... viver da memória do que era. Não, não quero seguir... é tudo sempre isso, a mesma coisa...e quando nos acostumamos a uma nova paisagem, novo terremoto, eu sei o que me aguarda. Nada além de prazer e beleza, seguidos de sublime dor...seguida da renovação da minha esperança, seguida de....a gente sempre acaba se sentido como que roubado. É isso, eu fui roubada.
B: É difícil mesmo, olhar para outra direção, quando a paisagem atrás de nós foi tão bonita.
A: Foi?
B: Era...
A: E já não é...
B: Não, é isso agora. Resquícios.

(Soa sirene. Silêncio, abrem enlatados e comem,um deles enrola-se em cobertor...como se estivesse frio)

A: O sol já vai nascer.
B: Não ainda... na verdade está se pondo.
A: Sério?
B: Sim. Observe a dança das cores no céu: cobre, lilás, azuis.
A: Está nascendo o sol. (fala com esperança)
B: Não, logo a noite absoluta cairá sobre nós. E depois...
A: Depois o que? (tem medo)
B: Um silêncio inabalável.
(pausa - A olha pro B)
A: Você tem medo.
B: Do silêncio não, do escuro tenho.
A: O escuro desconhece as coisas, desconhece a gente.
(pausa)
B: E os outros, todos?
A: Continuam... ou estão mortos como nós.
(ajeitam mais coisas)
A: Alguma lembrança da cidade?
B: Só essa foto e uma xícara quebrada.
A: Eu, só uma canção pela metade. A canção da última da tarde da cidade.
B: Canta...
A: Não posso, estou sem voz quase... foi a fumaça do que ruiu.
B: Ah... mas cante, cante baixinho.
A: Está bem.

(Canta enquanto arrumam as coisas, montando suas trouxas para seguirem e em pé se preparam para seguir Soa a sirene..)

B: Boa sorte.
A: Boa sorte também. Espero que não sobreviva.
B: Pra você também, o mesmo, e que seja doce.
A: Assim será.

( Contemplam os escombros pela última vez. Trocam tijolos e seguem caminhos diferentes.B faz menção de sair, mas para no caminho e fica a olhar A, que parte. Cortam o cordão que os liga até agora, quase imperceptível.)

B: Eu olho pra cidade de hoje e tento reconhecer os traços do de antes... mas aquilo que foi...não está. Passo horas olhando, procurando vestígios nas frestas das portas que sobraram, nas pedras da rua, nos fios de aço que algum dia amparavam os telhados das casas... mas nada, nada quase, muito pouco...é como se a alma da cidade tivesse partido, e o que sobrou foram corpos modificados.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Texto vocal



Hoje meu texto é textura vocal, um experimento. Homenagem aos amigos e amores raros que estão sempre no trânsito de seus próprios percursos particulares. A autoria é só emprestada, mas carrega a identidade da alma - voz. Que ela chegue até a Argentina e também a outros tantos lugares em que pessoas queridas estejam, e que a minha voz possa fazer com que se sintam próximas.

quarta-feira, 28 de maio de 2014



Prece


( dedicado a Marcelo Briotto, poeta de ação e letra)
(ler em silêncio)

Maria Cláudia S. Lopes

            Sexta. Dia de faxina, eu vazando. Queria falar sobre as dores remitentes: as físicas, as anímicas, as dores do espírito, as que nos ensinam e nos perturbam como fantasmas particulares. Que coisa mais mórbida, é quase noite de sexta e você aqui na companhia deste texto? É feio falar sobre dores em dia de sexta, dia de Oxalá meu pai, dia de usar branco e pensar em coisas boas e afirmativas. Mas quem sabe a minha dor, alcance a sua e te faça saber que é justo falar das dores.
            Houve um tempo em que as dores eram só parte da vida, e podiam ser confessadas, e podíamos dividi-las sem nos envergonhar. Essa semana ouvi algo sobre a dor e fiquei me perguntando: são todas as dores, dores de parto? E é preciso que aceitemos o que elas querem no ensinar e só então deixamos de tê-las? Como é possível que a gente aceite uma dor? Não gosto de dizer “tenho”, pois “ter” uma dor é algo que exige muita responsabilidade e um apego que julgo desnecessário. Mas há uma dor que me visita e que me faz sentir uma falta de esperança muito grande, porque ela me faz lembrar a DOR, das dores, de todas as dores do mundo, das dificuldades, dos desafios que impedem o nosso caminhar em direção ao crescimento. “Eu quero vicejar, não apenas sobreviver” ( li também essa semana). Ela me faz pensar no que fiz para merecê-la? Bem, ela também me faz pensá-la como oportunidade de cura, ela também me faz pensá-la como mistério inominável da vida, ela me faz lembrar de outras dores que once eu julguei que nunca iriam embora e que se transformaram em alegrias, ela me faz pensar em meu pai.
            Tenho uma prece a fazer, no dia de hoje. Que ela seja ouvida por todos os corações. Dor não pega, cada um tem a sua, mas às vezes perto de uma dor que não é bem nossa, sentimos muita dor. A minha avó se chamava Maria das Dores e eu sempre tive receio de chamá-la assim. Tenho uma prece pensada, falada, cantada, feita, e ela parte dessa minha dor remitente, às vezes intermitente...eu espero que ela seja capaz de reavivar para todos os dias a crença de que mesmo doendo a vida vale a pena.
            Pai Celestial, Mãe Divina, santos de todas as religiões. Que eu consiga olhar para as dores do mundo, as minhas e as do outro como parte da beleza e dos partos que vivemos em vida. Que ao em vez de me enfraquecer diante dela eu possa abrandá-la com entendimento, com amor, gratidão, sabendo que tudo se transforma do tempo do amadurecimento de cada dor. Que ao em vez de me abater e me entristecer eu possa cantar uma canção de ninar, para a nova criança que chega, dando espaço às transformações necessárias, mesmo que ela volte eu possa saber que ainda tenho a aprender com ela, e que não permita, pai, mãe, não permita que ela me prive de todas as outras belezas e alegrias presentes em minha vida. Peço coragem, força e alegria incondicionais, peço sorte e proteção.

            Tenho uma missão, e ela é a felicidade. Devo isso às dores minhas, do outro e do mundo inteiro. 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

poema urbano (2013)


. poema urbano: a Vida deitada.
(Para ser lido em voz alta; oscilando entre silêncios nas partes de cor)
Maria Cláudia S. Lopes

Automóvel placas buzinas motocicleta asfalto semáforos buzina automóvel a senhora que olha da janela passos móveis usados placas plaquetas um corpo deitado sobre cobertor ronco de motores rádio trânsito buzinas motocicletas janelas empilhadas tocos de cigarro empilhados muros e metrôs empilhados carrinhos de supermercado suicidas sacos plásticos homens trabalhando sem camisa ao lado dos pombos e pardais avenidas postes gatos que olham da janela os automóveis usados buzinas que olham da janela passos empilhados sobre o cobertor.
Algumas samambaias sonham.
Ela não sabia ser... mas ele gentilmente, com a graça de um cavalheiro, e muito pacientemente, esperava. Ela era do tipo esquecida das ternuras de ser. Ele não tinha um tipo – a bunda do tamanho certo, boas maneiras - estava aberto às coisas que se ofereciam tímidas ou vorazes, não importava. Tinha aprendido a aceitar o amargo ou doce como eram: amargo, doce... e valorizava cada dose mínima de afeto, fosse ele seco ou úmido, abundante ou discreto. Desde pequeno aprendera a receber o que estivesse lá para ser dado a ele, na mesa e na cama.
Tinha um cheiro vivido na pele, como quem vem de um lugar quente e estranho, que para ela era muito custoso acreditar que existisse. Ela pisava sempre nos pés dos homens com quem dançava porque tinha medo, mas o seu pulmão floria, chovia, bocejava, era uma força da natureza. Seu pulmão tinha esse movimento de se rir das coisas pequeninas.
Ele era um homem de costumes rígidos e que percorria caminhos familiares. Ela não era acostumada. No entanto, ele era um homem e ela uma mulher, e isso era o que importava. Porque o que ela queria era ter o seu banho cheirado por um homem, ter visto o vestido, ter um homem que lhe levantasse a saia e que fosse ao mesmo tempo meigo e indecente, que invadisse com a mansidão de uma gaivota a praia dos seus sonhos repartidos. E ele queria, além de ser quisto homem, uma flor que desabrochar, “o segredo de uma fechadura”, queria tocar uma mulher, pelos olhos, por dentro e fundo. No entanto, quase não se viram.
Orquestra desagradável de seres que passam pensam transitam reclamam tem esperança no futuro cinza um sol sai clareia cinza é chuva nuvem e cheiros desagradáveis de seres que automóveis placas passam e transitam sobre  cobertor o corpo semáforo a rádio trânsito a manifestação demandas humanas para corrigir demandas humanas uma grande roda gigante da miserável fortuna os automóveis móveis usados as pilhas humanas empilhadas e senhora que olha o gato da janela pessoas pensam asfalto reclamam buzina motocicletas tem esperança no futuro.
Porque ela queria alguém para quem esquentar as coisas: o leite, o arroz, o corpo. Porque ela não sabia amar... e estava sempre por isso tentando apreender aquela coisa arisca que chamava de amor, e esta coisa arisca sempre estava a lhe escapar. Ela era cega, queria ter todas as coisas que não podia ver, e como uma vespa cega ia atrás de flores sem conhecer-lhes o cheiro e as cores por inteiro. E como toda mulher, era também insaciável. Não havia nada - alimento, paisagem, coisa alguma que lhe aliviasse a fome. Nascera com um buraco absurdo no meio do peito, que jamais poderia ser preenchido - pois não é da natureza dos buracos serem preenchidos - e, embora ela soubesse disso, escolhia ignorar, e a sua vida era uma busca infinda para tentar aniquilar aquela fome, aquela sede de algo que não existia. Sua vida era toda movida pela existência deste “rombo” – ao mesmo tempo corrosivo e fundamental.
Nisso eram o avesso os dois, porque ele se tinha um buraco..era dono tranquilo e sereno. Ele olhava o buraco com aquela naturalidade quase fria, ele estava a par do controle, da lógica, dos “fatos”... e andava bem devagar, com passos justos, justos demais. Tinha no peito algo preso que ninguém nunca havia tocado, nem ele mesmo, nascera com isso, essa coisa presa, esse nó amarrado no meio do corpo e sua mãe não se deu conta ao acender satisfeita, uma a uma, as velas de seu último aniversário. Este algo de preso que o habitava queria muito voar, mas não se atrevia, ele não se dava conta por inocência, era um homem muito inocente. Pensava, pensava que todos no mundo fossem assim presos no peito, aceitava com pacata humildade essa maneira de existir.
Ele não estava lá para preencher nada e nem para roubar nada que não lhe pertencesse. Ela queria que ocupassem dentro dela todos os espaços vazios. Ela, desesperadamente, queria ser roubada.
No canto de uma esquina, anônimos, um casal desacelerando as paredes apressadas em salivas lentas, lânguidos amassos. O mundo todo para paralisado. Em ralentado abraço os passos agora todos em mínima velocidade. A língua que é quente e avermelhada de leve textura áspera contra a outra viva, se umedecem e se atritam desavisadas. Os lábios, as peles, os pêlos se afirmam ali, por se tocarem, coexistentes. E há a sensação do desejo palpável que torna as calças úmidas ou justas demais. E há o odor que nasce da vontade de extinguir proximidade e distância e ser o outro, no outro. Desejo doendo, inflando, inflamando. Os hálitos que lembram coisas muito antigas e esquecidas. As mãos que suam delicadamente e não sabem mais se evitar, querendo ganhar mais e mais intimidade, ganhar costumes. Um pudor puro e vencido, latente latindo.
O desejo é a vida nos pedindo baixinho, vezes implorando que se cumpra.
Depois de dizer, entrava pela porta: olhos lânguidos, timidamente doces e pernas nuas como as da lua, braços atentos como os de uma serpente, seios cantando uma ópera. No coração um buraco rouco que aspirava como uma máquina o que via pela frente, e na barriga carregava uma menininha que queria ser aprovada, amada, cuidada, que queria ser o que era, uma menina. Nos dentes um pouco de veneno, só um pouquinho, para se defender do passado. Ele recebia aquilo acostumado, e também com medo, confuso, sem saber o que fazer com tudo que recebia. Entregaram-se ao desejo, vida em súplica, sexo é oração. A vida pronta.
Suas peles gemiam palavras incompreensíveis, suas bocas transpiravam luz, seus ouvidos cantavam. Ela se esforçava em acreditar que o buraco poderia estar menor, e rezava em segredo para que ele não se assustasse se ela o chamasse, naquele instante, de “meu amor”; e se esforçava para acreditar que aquilo era realmente muito importante quando, algo nela saberia contar, que tudo nasce e morre dentro do desejo. Ele não pensava muito, não mais que o suficiente, se dava ao prazer no instante, como em poucos momentos fazia, e queria sentir-se bom, queria que todos soubessem que era bom.
Só se abraçam, em silêncio, se acariciam, se reconhecem. Têm os olhos fechados para tudo. Os órgãos tem pressa, apalpam urgências, compartilham fomes.
Poderia ser um presente o espaço para fazer-se mulher e homem, um no outro, pelo outro, através? Ela pensava, naquele minuto de cio, que havia de ser por razão essa, é que as pessoas chamam o sexo de “fazer amor”, e bem ou mal ele se fazia, do tamanho que era, na cor que tinha. Ele era um segredo tão simples de se ver, era apenas o que fazia a ela e sem mais, como uma grande reticência sobre a cama. Tendo aliviado a sede de seus corpos, estendiam seus silêncios perigosos sobre o lençol azul, e a luz... que carinhosamente penetrava através da janela semi aberta deitava-se sobre as barrigas nuas.
E contra: sirene avança sinal rui o cheiro do restaurante barato os horários os preços a gasolina o jornal o assunto do trânsito a notícia da morte por asfixia a alergia a poluição a dengue os postes a polícia militar as decisões o plano de carreira o projeto de vida a promoção o aspirador a comida do gato a indústria imobiliária automobilística a cópia das chaves o lixo da rua as gravatas os engraxates os restos os sustos o lixo as lojas os tocos de cigarro molhados o cheiro de cigarro aceso o engarrafamento os desencontros os desacertos os desalinhos a calçada a falta de espaço o torto o hostil o surdo
Como uma lagoa muito delicada e branca, quase translúcida, cheirando a mar e ao que é velho... a Vida também se deitava - viscosa, plácida, preguiçosa e um pouco ressentida por não cumprir-se em nove meses mais bela e pronta.. lagoa branca no deserto de seus ventres.
No canto da esquina anônima, quase em frente, um só pé no paralelepípedo, os outros no alto – mãos que se acalentam, se apertam e visitam nuca, quadris tímidos, punho, pescoço. Dançam quase lentos, ávidos oásis, contra o ruído das ruas. Amolecendo concretos e ponteiros, derretendo o duro... sendo gesto, poema feito. Suspensos e Salvos.
Ela cantava então mudas canções de ninar e ele dormia embalado sem saber, sumia para percorrer os sonhos dos quais jamais se lembraria.