terça-feira, 20 de maio de 2014

.Ensaio (breve) sobre a saudade.

( Para ser lido em voz alta)
Maria Cláudia S. Lopes

                Pode ser que porque aqui, no Brasil, a palavra SAUDADE exista, o recheio dela passe a existir melhor e mais contornado também. Estamos sempre às voltas com essa grande dúvida... se as coisas estão antes das palavras ou por elas. E porque a coisa existe, precisamos falar sobre ela, é assim para alguns, para mim certamente é. Saudade:
                Pode ser um reencontro telepático, e provavelmente solitário, com uma ausência presente. Quando de repente de uma faixa de cd (ou boina que se vê numa feira ao ar livre enquanto se passeia), inesperadamente, o presente te pesque uma presença ausente. Muitos se enganam ao afirmar que saudade é um sentimento ligado ao passado, não é assim. A saudade é uma experiência do presente, uma espécie de “bricolagem” de: um desejo que desperta, memórias inquietas que nos visitam, e o desfrute da ausência.
                Esse desejo pode ser um desejo pequeno de uma coisa pequena - como olhar, abraçar ou contar alguma coisa a alguém. Pode ser que ele cresça até um ponto que se torne unbearable... e por isso é preciso ter estratégias para domesticar a saudade mais selvagem, para que ela não te arranhe ou morda ou machuque. Acredite, isto nada tem a ver com encontros virtuais ou telefone, pois a saudade passa a ser por si, e não depende mais de um outro. A saudade é a sua relação com uma ausência presente, e ela pode aumentar, continuar, até mesmo depois de revermos ou conversarmos com o ser disparador da saudade. As mencionadas estratégias não podem ser ditas aqui - são extremamente pessoais e cada qual tem de criar as suas. Aviso que tentar matar a saudade pode ser especialmente perigoso, recorrer às pequenas ações que trazem uma ilusão de presença: como rever um filme, ou ver uma música que fez parte de momentos do “nós”... ou mesmo recuperar uma receita de que se tem saudade para comer sozinho. Pode ser o seu fim, só intensificará a selvageria da saudade, pois tentar matar a saudade é vivê-la mais e mais.
                Pode ser que em alguma manhã de um dia mais cinza, você amanheça com aquela peneira mais furada, aquela peneira fina, tênue que separa os tempos, os quais nomeamos – passado, presente, futuro...e neste dia pode ser que o calor do cobertor quase aleatoriamente te lembre um corpo que esteve perto, e passa a estar. Memórias instantâneas são aquelas que a gente não vai buscar para viver ou tentar matar a saudade... as memórias instantâneas são muito espontâneas, elas são o momento de entrelaçamento entre esses tempos referidos.
Pode até ser que seja uma manhã ensolarada e uma borboletinha amarela atravesse as plantas da sua varanda, e aquele incidente quase insignificante te faça lembrar da beleza que é o amor, e te faça pensar em alguém...pode ser que enquanto essa borboleta passe, te atravessando o dia, a vida, ela consiga então pescar uma lembrança remota de outras borboletas e cores, e de alguma tarde de cachoeira. Saudade é amor que quer ser amado, e busca pretextos para ser.
                Esta é uma apologia à saudade. Pode ser que ela te assuste, te traga um receio de apego ao passado ou de falta de conexão com o momento presente. Mas a saudade é o reconhecimento do tamanho, volume, importância, valor, raridade das presenças que parecem não estar... mas estão em nossas vidas. Claro que cautela é necessária... muito cuidado mesmo. A saudade pode arrastar consigo uma melancolia molhada, um ar rançoso, um hálito de túmulo, teias de aranha, páginas amarelas – pode ser que ela deixe seus pulmões pesados, que te faça sentir afogado, afundado no fundo, chovendo e nublado, como se o mundo estivesse se desbotando porque toda a alegria se ausentou com um tempo que nunca voltará - mas esse é um outro tipo de saudade, é uma saudade sem esperança, sem importância, é uma saudade de si, uma saudade que sinaliza a real ausência de algo que até ali não se pode nomear bem. Escute-a, ela pode te apontar caminhos para outras saudades mais ensolaradas.
                Como comecei a contar... há muitos tipos e tamanhos de saudade. Há uma delas que se assemelha a uma pequena dor (de dente, de pé, de pescoço) ela está ali o tempo todo, quase, mas não chega a incomodar a ponto de tomarmos uma atitude concreta. Há uma outra que é uma saudade simulada, um simulacro de saudade, é o desejo de senti-la, ou quando achamos que deveríamos sentir mas não estamos sentindo exatamente...Há a saudade maré, que é totalmente influenciada pela lua, e pode crescer invasiva ou fazer um barulhinho de água ao longe. A saudade é a consciência de uma presença, regardless de todas as provas materiais que permitiriam comprová-la.

                A saudade não é o medo do abandono ou do esquecimento, a saudade tem a sua ética que é a de jamais exigir reciprocidade, a saudade não é carência consequência de alguma solidão física ou anímica. A saudade é um encontro, é um momento de contemplação do próprio tempo em si, do amor, da presença, do desejo. Ela só existe porque existe algo em nós que sabe o quanto vale uma presença. A saudade é desfrutável para quem não lhe atribui o peso dramático das mortes contidas na vida. Ela pode te acariciar, te fazer saber que em sua vida existem coisas a serem cuidadas, reverenciadas. É isso: a saudade pode ser... pode ser que ela seja uma reverência à vida.

2 comentários:

  1. Pedindo licença para lê-lo em voz alta no próximo Sarau da Therê aqui no Rio!

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